#3 – Da periferia pro interior: um retorno

Lá estava eu, subindo o penhasco do qual ia pular. Olhei pra baixo e já estava alto, então subi mais um pouco. Olhei de novo e era alto demais, não tinha tanta coragem. Desci para a plataforma anterior. Ali já era o bastante.
No fundo do abismo havia minha casa no interior, lá onde nasci, cresci e… mergulhei sem dó nem piedade. Sentia o vento chacoalhar minha pele para fora do meu corpo. Um momento de alívio. Tive tempo o suficiente para sentir o tamanho da queda. O frio na barriga. A espera pelo impacto.
Quando cheguei na base do penhasco, não me espatifei no chão, entrei como um cometa na água. A casa do interior havia se transformado em uma piscina de salto ornamental. Logo percebi meu erro: pulei de pé. Visto de fora, deve ter sido uma péssima entrada na água, coisa de quem não sabe dar um belo mergulho.
Ao entrar na água, o tempo se dilatou e eu estava vivendo em câmera lenta a minha turbulenta entrada na piscina olímpica. Via as bolhas de ar subindo pelo meu corpo e eu sabia que iriam fazer um grande splash na saída, eu perderia muitos pontos dos juízes por causa disso. Desesperado, tentando conter minhas falhas, quis agarrar as bolhas de ar para não estragarem meu salto do abismo.
As bolhas foram eficientes em escapar das minhas mãos e fazerem seu festival fora da água. Puto, morrendo de raiva por não conseguir mergulhar em perfeição, me debati de fúria dentro da água. Logo percebi que me faltava ar e eu não conseguia respirar como um peixe. Lutando sem fôlego contra minha incapacidade de respirar, acordei espumando de raiva.
A primeira coisa que pensei foi: “Que idiota! Era um sonho, eu não precisava respirar!”


Nasci e cresci no interior, em Piracicaba (SP), mas não consegui durar muito tempo lá. Parti para uma capital em busca de aceitação, achando que as pessoas da cidade grande seriam mais “mente aberta”, ledo engano. Tão logo cheguei, tão logo descobri a verdade. Tinha caído no conto do vigário.
Morei com as baratas, bebi com os ratos e comi com os pombos na periferia do centro urbano. Cansei de pagar aluguel para proprietários sem coração. Cansei de comer migalhas e ter que apertar o cinto. Agora está na hora de voltar! O concreto e o asfalto queimam meus pés. Os prédios espelhados refletem aqueles que não podem entrar no ar condicionado.
Não busco a fama, prefiro a lama. Se me querem embaixo da terra, serei minhoca nesse mundo cruel. Eu odeio a urbanidade e amo a roça. A paz é verde como a mata. A calma é azul como o céu e eu voltarei para o interior num mergulho repentino feito quase sem querer. Isso é uma promessa de retorno.


Texto escrito a partir do título sugerido por Samantha Alflen após vermos o filme A marvada carne

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